Após décadas de repressão e estigmatização, o uso terapêutico e medicinal de maconha vem sendo debatido e permitido em diversos lugares do Brasil e do mundo, com resultados incontestáveis. Com a aprovação, em abril, de um Projeto de Lei que prevê a distribuição gratuita de medicamentos à base de cannabis no SUS de Diadema, a Câmara de Vereadores de Diadema voltou a debater o tema na noite desta terça-feira (30), em audiência pública que discutiu a implementação do mencionado PL. A Agência de Desenvolvimento participou da discussão.
O evento contou a presença de parlamentares da Casa e dos seguintes convidados como componentes da mesa: Cláudia Fegadoli, docente e pesquisadora da Unifesp, Thiago Ermano Jorge, presidente da Associação Brasileira das Indústrias de Cannabis (Abicann), Guilherme Marques, da Associação Pan-Americana de Canabinoides, Eliane Nunes, diretora da Sociedade Brasileira de Estudo da Cannabis Sativa (Sbec), Margareth Tangerino, secretária-adjunta de Saúde, Zuleika Maria, secretária-adjunta de Assistência Social e Aroaldo Silva, secretário executivo do Consórcio Intermunicipal do Grande ABC. Renata Souza, da Anvisa, participou de forma virtual, desde Brasília.
“Projeto muito importante”
Primeira a falar, Renata Souza apresentou um panorama da regulação da cannabis atualmente no país, com suas três vias de acesso legal, como medicamento, por meio de produtos com autorização sanitária (que é diferente de registro) e também por importação por pessoa física, e relatou um pouco dos procedimentos de registro e regulamentação de remédios por parte da agência. “O fato de um produtor ser controlado não o isenta de atender a requisitos sanitários, qualquer produto com finalidade terapêutica precisa ser registrado na Anvisa de acordo com a lei”, explicou.
Na sequência, Thiago Ermano Jorge lembrou do caráter ancestral do consumo de maconha, que acompanha a humanidade desde tempos imemoriais, e ressaltou alguns de seus potenciais terapêuticos e medicinais (termos que não são sinônimos). Jorge qualificou o Projeto de Lei aprovado em Diadema sobre o tema como “muito importante” e rememorou a existência do sistema endocanbinoide em nossos sistemas, mais um indício da arbitrariedade da proibição da substância.
Criticando a limitação nas formas de acesso à droga e a “omissão” do Congresso Nacional, Jorge apontou que sua instituição está “trabalhando desde 2017 para que os brasileiros não precisem importar produtos que poderiam ser produzidos em nosso país, com muito menos custo” e lembrou como a opção pelo termo “cannabis” no lugar de seu sinônimo mais popular, “maconha”, responde ao ainda grande preconceito que circunda a temática. Segundo o expositor, já são 14 estados brasileiros com leis sobre cannabis medicinal, além de 80 empresas importadoras, 320 mil pacientes e cerca de 40 associações de pacientes, algumas delas com autorização judicial para cultivar e produzir medicamentos.
SUS é universal
Logo após, Claudia Fegadoli também se pronunciou, defendendo o direito ao plantio e apontando que “não existe uma cannabis medicinal e outra não, o nome dessa planta é maconha e ela possui mais de 150 canabinoides descritos, não é só o CBD e o THC”. “Esses ativos que a planta tem atuam em efeito comitiva, ou seja, um ajuda no efeito do outro, assim como ocorre na fitoterapia”, prosseguiu, destacando também as formas de classificação da planta a partir da concentração de seus canabinoides.
Por fim a professora criticou a previsão da Lei aprovada em Diadema quando esta aponta que somente pacientes que comprovassem sua falta de condições financeiras poderiam acessar o medicamento de forma gratuita, o que contraria a universalidade do atendimento que caracteriza o SUS.
Eliane Nunes, que atualmente é aposentada mas já atuou 32 anos na Saúde Pública de Santo André, descreveu algumas das aplicações do uso terapêutica de maconha e se qualificou como uma “pioneira” entre seus colegas médicos e psquisatras, sua especialidade.
Antes do encerramento, ainda houve espaço para intervenções de integrantes do público, que contribuíram com opiniões e perguntas.
O Projeto de Lei
Aprovado em segunda e definitiva votação em 18 de abril de 2024, o Projeto de Lei 009/2024 trata do “direito do paciente receber, gratuitamente, do Poder Público medicamentos nacionais e/ou importados” derivados de maconha após prescrição de profissional habilitado e autorização da Anvisa. Segundo o projeto, o paciente receberá os seu medicamento “durante o tempo necessário, independentemente de idade ou sexo” e este direito se estende às unidades de saúde privadas conveniadas ao Sistema Único de Saúde SUS.
O texto estabeleceu prazo de 30 dias após sua aprovação para a criação, pela Secretaria Municipal de Saúde, de comissão de trabalho para implantar o programa de distribuição de derivados da demonizada planta em Diadema, “com participação de técnicos e representantes de associações sem fins lucrativos de apoio e pesquisa à cannabis e de associações representativas de pacientes com epilepsia, transtorno do espectro autista, esclerose, Alzheimer e fibromialgia”.
Ainda segundo o projeto, são objetivos da nova política: diagnosticar e tratar pacientes cujo tratamento com a cannabis medicinal possua eficácia e/ou produção científica que enseje o tratamento; promover políticas públicas para propagar a disseminação de informação a respeito da terapêutica canábica; atender a norma de eficácia plena e aplicabilidade imediata estabelecida no art. 196 da Constituição Federal e “fazer cumprir direitos fundamentais prestacionais, quanto mais considerando a notória destinação de preciosos recursos públicos”.
Texto: Júlio Delmanto
Fotos: Vinicius Gonçalves